O primeiro sinal é a linguagem que se desfaz, se confunde, se reinventa; a narradora olha para John, seu pai, e se pergunta: «O que havia em sua cabeça? Se fechava os olhos, ou quando sonhava, visitava um mundo figurativo?».
Este ensaio autobiográfico acompanha a experiência de um pai sofrendo de demência aos olhos de sua filha, os dois gradualmente afastados pela memória vacilante, pelos gestos em falso de John — «o extravio da língua […] uma língua que minguava» — e reaproximados então pelas revisitas constantes ao passado, a uma pátria anterior, a uma língua materna.
Julia de Souza recorre a uma sensibilidade peculiar, ao movimento do arqueólogo que delicadamente encontra estilhaços sob os farelos do tempo, para construir uma narrativa tão íntima quanto honesta, tão sóbria quanto lírica.
Compõe-se aqui um autorretrato por meio do outro, uma leitura de si pela transformação do olhar alheio — «Temos as mesmas iniciais, e principalmente a forma como escrevo a letra J é muito semelhante à de John. Julia de Souza, escrevo repetidas vezes com a caneta azul. Tento forjar a assinatura do meu pai, como chegamos a fazer algumas vezes quando ele já não conseguia escrever. John Manuel de Souza. John de Souza. John».
Mergulhamos, enfim, no vazio revolto onde se fincam as raízes da memória, «a memória dos seres e objetos que já passaram por este mundo e que, como tudo o que é matéria, sempre correm o risco de desaparecer».
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